3 de outubro de 2011

A grande viagem

Foto: Darci Bergmann


Por Darci Bergmann

A minha trajetória aqui já percorreu mais de 63 anos. Ao longo desse caminho se descortinaram cenários admiráveis e outros de desolação. Como num filme, fui espectador. Também fui ator e de alguma forma alterei o cenário. A trama da vida vai fluindo e o fim ainda não tem data marcada. Quando esse filme terminar, inicia a grande viagem para outro cenário totalmente desconhecido. A minha embalagem  ficará nas entranhas da terra. Também ficarão todos os apetrechos, alguns tidos como indispensáveis e que não terão nenhuma serventia na nova jornada.
No tempo que resta desse filme da vida, devo fazer uma revisão.  Uma prestação de contas à minha consciência de ator. Quem sabe revise os meus erros de interpretação. E se possível ainda conserte alguns estragos meus e de outros atores.  É isso mesmo. Recebi um roteiro para o filme da vida, mas com o livre arbítrio de alterá-lo se o quisesse. Atuo numa fração do Planeta e o elenco é de uma única espécie que a cada ano se torna mais numeroso.  Agora percebo que atores de outras espécies foram negligenciados e alguns até correm risco de desaparecer.
O cenário é variado, é sutil e uma teia de formas de vida ainda palpita em alguns locais. O passar dos anos aguçou minhas percepções. No meu sítio, uma pequena amostra do gigantesco cenário da Terra, sou um espectador deslumbrado, tamanha é a diversidade do elenco de seres que eu antes não percebia. É uma quase reverência. Estou no primeiro domingo da primavera.  As chuvas regaram o chão e a explosão de verde é intensa, em vários tons. Nos bosques, o perfume de flores, de resinas e da terra molhada. A sinfonia de fundo vem de seres alados. De repente, o quase silêncio é interrompido pelo ronco de outro ator, lá do alto de uma copada. É um bugio macho. Comanda um grupo de fêmeas e os filhotes, dentro de um território demarcado por ele. Ali, naquele momento eu sou o único da minha espécie. Mas não há solidão. Nem poderia haver com tamanha quantidade de formas de vida. Sento-me no chão forrado de folhas e fico calado, apenas observando. Aqui e ali observo que os tatus fizeram pequenas covinhas em busca de minhocas e larvas. Muitas vezes coloquei sementes nessas covinhas e as tapei com a terra mexida e sobre esta coloquei folhas para manter a umidade. Ao meu lado uma pequena muda de jabuticabeira é testemunha de que a parceria com os tatus deu certo.  Agora, um quase silêncio. Nenhum ruído da civilização. Tenho uma sensação de paz. Ainda sentado faço uma meditação. Uma gralha-picaça chega de repente e faz coreografia bem perto de mim. Terminada a apresentação, volto a meditar. Agora é um bem-te-vi que se anuncia e outro mais adiante responde. O desfile de beldades não pára. Beija-flores, o alma-de-gato e outras aves se apresentam como atores neste cenário deslumbrante. Nunca se está só quando se está nas entranhas de uma floresta. Nunca se está só quando se está num campo verdejante. A vida palpita nesses cenários.
Procuro refazer os pensamentos e me vem à mente um sentimento de dúvida. Até quando cenários assim existirão aqui? A espécie humana, no seu conjunto, está obcecada pelo progresso. Os seus valores são outros. Por onde ela passa deixa marcas profundas de destruição e de resíduos. As paisagens do cenário são alteradas sempre com os mesmos argumentos. Ora porque uma estrada é necessária, ora porque há escassez de energia. Outras vezes porque há necessidade de produção de alimentos. Nessa visão unilateral de povoar o Planeta só com uma espécie talvez resida o maior equívoco da civilização. Uma civilização insensível, afastada do meio natural, torna-se alienada, dependente e sujeita à manipulação.  E ainda são poucos os indivíduos que tem percepção mais apurada sobre a importância de todas as formas de vida. Eu mesmo não sei o que será deste recanto que agora reverencio quando eu partir para a grande viagem.  Se depender de mim, ainda fico aqui por algum tempo. Até para dar minha humilde contribuição por um estilo de vida mais sustentável.        

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