30 de março de 2013

Sexta-feira santa: o ritual da volta ao campo

O grupo acima mantém a tradição de colher
macela na sexta-feira santa


Por Darci Bergmann


   A tradição secular continua viva. Na sexta-feira da paixão muitas pessoas se deslocam das cidades para a zona rural em busca das flores da macela*. Dizem que, sendo colhida nesse dia santo, o chá das flores tem ação benéfica sobre o organismo. Pensamento positivo faz bem a qualquer um. Entendo que os benefícios da tradição vão muito além do consumo do chá. Acontece que é uma oportunidade de contato das pessoas com a natureza. Em especial quando a data ocorre em dia de sol e temperatura agradável. Foi o caso desta edição de ontem, dia 29 de março de 2013, aqui em São Borja.
   Já antes de clarear o dia, centenas, talvez milhares de pessoas se deslocavam a pé, de bicicleta e de carro pelas rodovias e estradas vicinais em busca das flores da herbácea. Ela se restabeleceu em muitas regiões, depois das chuvas que se seguiram a uma estiagem de quase um ano. Também, nesse período foram raras as queimadas nos campos. Portanto, uma série de fatores fez com que a marcela ressurgisse em locais onde parecia quase extinta. Isto demonstra o quanto a natureza pode se recompor. 
   Sempre observo o comportamento de quem vai ao campo nessa data. Pude perceber algumas melhorias na questão do lixo que é jogado pelos 'romeiros', pelo menos nas imediações do meu sítio. De negativo, percebi que alguns urbanos ainda não aprenderam muito sobre a biodiversidade. Algumas pessoas levaram cães e os soltaram no campo, atiçando-os contra algum bicho que ali estivesse. No geral é sempre gratificante quando a gente reencontra amigos e conhece outras pessoas nessas ocasiões. 
   A volta ao campo, ainda que de forma esporádica, é uma prova de que nós humanos dependemos da natureza e dela fazemos parte. 

*Macela ou marcela é nome popular da herbácea Achyrocline satureioides, família Asteraceae
_____________________________________________________________________
Mais sobre o tema:
      A COLHEITA DA MACELA 
Darci Bergmann
A tradição de colher macela nas sextas-feiras santas ainda se mantém nas regiões sul e sudeste do Brasil. A macela tem o nome botânico de Achyrocline satureioides e pertence à família Asteraceae, a mesma do girassol, do tagetes e da alface. O costume consagrou o uso das inflorescências dessa planta para o tratamento de vários problemas de saúde, entre os quais disfunções gástricas, cólicas de fundo nervoso, epilepsias, diarréias, inflamações, dores, entre outros. Harri Lorenzi e F. J. Abreu Matos, no livro Plantas Medicinais no Brasil, citam que: Estudos in vitro realizados no Japão mostraram que extratos das flores desta planta inibiram em 67% o desenvolvimento de células cancerosas. Pesquisadores americanos demonstraram in vitro propriedades antiviróticas do extrato aquoso quente das flores secas contra células T-Linfoblastóideas infectadas com o vírus HIV.
A macela se desenvolve em campo aberto, não tolerando o sombreamento de árvores e arbustos. É freqüente em beira de estradas e por alguns agricultores é considerada erva daninha. O uso popular agora tem respaldo nas pesquisas de ponta. Mas em algumas regiões a macela está se tornando escassa. São várias as causas que concorrem para a escassez da macela. Não só dessa planta, mas de várias outras. No geral, um dos motivos é a nossa cultura que não dá valor àquilo que não é cultivado. Plantas herbáceas, sem uso conhecido, são vistas como invasoras ou inúteis.  Mesmo pessoas consideradas cultas demonstram ignorância quando o assunto é biodiversidade. Ao enxergarem um campo macegoso, pululando de vida vegetal e animal, logo concluem que ali está uma área improdutiva. Essa miopia ecológica não permite a essa gente de cultura de gabinete uma visão holística das coisas. Muitas dessas pessoas são entronizadas como autoridades. Nessa condição,  são capazes de exterminar o que resta dos campos naturais, taxados de improdutivos. Os termos chircal, macegal, bamburral soam-lhes como áreas abandonadas à própria sorte. Nessa concepção cultural desfocada da natureza reside a maior causa da escassez da macela e de outras plantas nativas.
Constatei também que as queimadas reduzem a população da macela e de outras herbáceas medicinais. Os campos macegosos são facilmente atingidos pelo fogo a partir das estradas e dos corredores vicinais. Os fumantes muitas vezes contribuem para essas tragédias ambientais ao atirarem as pontas acesas de cigarros em locais impróprios.  
Outra causa de redução da biodiversidade é o uso intensivo de agrotóxicos. O uso de herbicidas está alterando a composição florística próximo às lavouras pulverizadas. O problema se agrava ainda mais quando essas pulverizações são feitas com aeronaves agrícolas. Para se ter uma idéia, um avião que aplica herbicida numa área de 100 hectares, sobrevoa outros tantos hectares, no entorno, fazendo manobras. E existem produtos que, pela sua característica de volatilidade, atingem grandes distâncias. É o caso do herbicida Clomazone. Assim, não é de estranhar que várias plantas da medicina caseira, entre elas a macela, estejam desaparecendo do cenário em muitas regiões.
A tradição de colher macela na sexta-feira santa talvez ainda persista. Depende de cada um de nós. Muitos dos que vão aos campos de macela já deixam no local parte das flores para que as suas sementes germinem para uma nova colheita no ano seguinte. Mas é preciso ir além. A natureza precisa de novos aliados para fazer frente à erosão na biodiversidade.   

Um comentário:

Melissa Bergmann disse...

A última sexta-feira foi movimentada no interior de vários municípios gaúchos, quando a tradição da colheita da marcela mais uma vez levou as pessoas à procura dessa planta. Em São Borja, nas proximidades do Sítio Itaperaju e da Fepagro, dezenas de famílias saíram da cidade para fazer suas caminhadas em meio aos "matagais" ou capoeiras de ocorrência da marcela. Observa-se que a cada ano as pessoas estão mais atentas à importância desses ecossistemas para a manutenção da biodiversidade da flora, preocupando-se também em não descartar resíduos nesses locais. Com a passagem de centenas de pessoas pelas estradas vicinais e pelos campos, percebemos que os cuidados com o ambiente foram uma atitude plausível, e que essas atitudes se perpetuem ao longo dos anos com essa bela tradição do Rio Grande do Sul.