7 de dezembro de 2010

A nossa água. Alerta Brasil

Por Darci Bergmann

Em nosso país vem acontecendo uma realidade que precisa de mais atenção da sociedade: trata-se da questão da água. De uns tempos para cá, em todo o mundo, já existem sinais de que esse bem de consumo vital, é alvo da cobiça de grupos poderosos. No Brasil não é diferente. A legislação estabelece que os municípios tem a concessão do abastecimento público da água, assim como dos resíduos sólidos e efluentes líquidos. Os municípios também podem terceirizar esses serviços, com prazos definidos. Sempre faltaram recursos para a estruturação desses serviços de forma adequada para populações cada vez maiores. Houve um tempo em que as empresas privadas ainda não tinham grande interesse na exploração dos serviços de abastecimento de água, nem tampouco na coleta e destinação dos resíduos de qualquer natureza.

Tal situação levou os estados brasileiros a investirem na criação de companhias públicas de água e saneamento e a CORSAN foi modelo para muitas delas. A universalização do abastecimento público da água também foi decisiva e alavancou recursos para o setor. No que tange aos serviços de abastecimento de água, a maioria das cidades brasileiras está servida de forma regular e com água própria para o consumo. Tanto é assim que os índices de mortalidade infantil caíram drasticamente, ajudadas por programas como os da Pastoral da Criança e sua similar da Saúde. Existem, é claro, ainda muitas regiões com dificuldades nessa área. Mas foi graças aos estados e suas companhias de água, políticas públicas adequadas e iniciativas privadas de solidariedade que o Brasil melhorou muito. Tal melhoria se deu sem a visão de lucro sobre o bem público água.

Na questão da coleta e tratamento do esgoto cloacal a realidade é outra. Os investimentos são mais volumosos. E agora com a universalização desse setor, os recursos públicos começam a fluir mais. E as corporações privadas estão ávidas para abocanhá-los. Juntos, os serviços de água, coleta e tratamento de esgoto representam uma atraente arrecadação mensal garantida pela população das cidades. Para isso, essas corporações montam estratégias para causar uma boa impressão junto à opinião pública e por conseguinte aos políticos de visão imediatista. Embora o setor de esgoto cloacal seja o de maior investimento, o que as corporações privadas querem é mesmo abocanhar o setor da água pública. O esgoto pode até correr pela sarjeta. Dá mau cheiro e um aspecto desagradável, polui os rios e o solo e pode transmitir doenças. Mas nada disso se compara à falta de água potável. Água é um bem essencial e por isso mesmo não deve ser considerado mercadoria como querem alguns. Devemos tratá-la como um bem precioso, que deve ser utilizado sem esbanjamento. Também não deve ser instrumento de cobiça e concentração de poder nas mãos de poucos.

Na minha opinião, existem três setores em que o estado precisa atuar com prioridade: saúde, educação e água públicas de boa qualidade. Há quem inclua outros setores. Não incluí a coleta e o tratamento de esgoto porque esses serviços podem ser feitos de forma descentralizada. Hoje temos tecnologia que permite o tratamento de esgoto desde uma residência, um quarteirão, um bairro sem depender de grandes áreas físicas. Passou-se o tempo em que era preciso transportar esgoto de uma a outra ponta da cidade, fazendo valetões e crateras. Em alguns casos essas práticas ainda são necessárias. O esgoto pode ser coletado e tratado no local onde ele é gerado. Uma simples fossa séptica, dessas com brita e areia, já realiza um estágio de tratamento. Já vi pessoas com mansões e carros de luxo que não investem um centavo na instalação desses dispositivos de tratamento e largam os dejetos no esgoto cloacal. Depois reclamam soluções do poder público e talvez queiram que o município passe à iniciativa privada esse tipo de serviço e aí incluída a concessão dos serviços de abastecimento de água.

Com a água essa descentralização também é possível em parte. Existem moradias que já dispõem de captação e tratamento da água das chuvas ou de poços, tornando-a potável dentro dos padrões normais. Isso auxilia o abastecimento público de alguma forma. Mas é preciso ter em mente que num mundo de população crescente e mudanças climáticas a disponibilidade dessas fontes de água pode ficar comprometida. É o que já está acontecendo. A tal ponto que em alguns países um barril de água equivale o preço de um barril de petróleo. Isto que água é um recurso natural renovável e o petróleo não.

Voltemos às estratégias das corporações. Elas sabem que um esgoto correndo a céu aberto é prato cheio para chamar atenção. Alardeiam incompetência do estado e das suas companhias de abastecimento e fazem terrorismo sobre doenças transmitidas pela falta de coleta e tratamento do esgoto. Isto agora, quando as verbas públicas começam a aparecer. Antes se metiam em outros filões de mercado, tipo petróleo, financeiro, transporte, bens de consumo e por aí afora. Mostram-se boazinhas para resolverem os problemas de mau cheiro e parecem resolver todos os problemas de saúde pública. Perdoem-me a frase que me disse alguém, mas ela se tornou real: se merda valer dinheiro o investidor aparece.

As corporações agem com muita sutileza. Primeiro, é preciso abalar a credibilidade das companhias estatais, com coisas pontuais, tipo buraco e valetas mal tapados, vazamento de água aqui e acolá, esgoto a céu aberto, doenças geradas pelo esgoto sem tratamento e outras mais. Depois, apontar as soluções com projetos elaborados por equipes capacitadas e oferecê-los aos prefeitos e vereadores. A metodologia se encaixa em todos os municípios. Existem até equipes de advogados especializados que fazem todo o roteiro de como encaminhar o expediente. A repetição das ladainhas dos problemas e falhas vai ao legislativo, ao executivo e à imprensa e vira ódio contra a companhia estatal como se ela fosse a responsável por todas as mazelas de uma cidade. Projetos fracassados dos prefeitos são esquecidos, o excessivo número de cargos de confiança não é problema, gastança com propaganda na mídia não é problema. Agora o alvo é a companhia de abastecimento de água e saneamento.

Nada é feito para melhorá-la. Alguns deputados também metem o bedelho e querem tirar proveito eleitoreiro do caso. Essa gente toda esquece que por muitos anos essa mesma estatal foi a que trouxe água e fez investimentos que melhoraram a saúde pública. Ao invés de execrá-la deveriam agora juntar esforços e propugnar por mais recursos e resolver também o problema de coleta e tratamento de esgoto. Isto pode ser feito até pelas prefeituras, em parte. Podem-se buscar alternativas de gestão compartilhada entre União, Estado e Município nessa área, como uma espécie de SUS do saneamento básico.

Há também a possibilidade de concessão compartilhada. Por exemplo, se o problema é de esgoto, mas não de abastecimento de água, não é preciso passar a concessão de água, por prazos absurdos de 25 a 30 anos a um grupo privado. Pode-se pensar na concessão do serviço de coleta e esgoto a mais de uma empresa e manter o controle estatal da água. Impraticável? Para mentalidades retrógradas, sim. Para administradores sérios no mínimo uma questão a ser estudada. Isto já é realidade em várias cidades em outros países.

Tenho ouvido referências de que as empresas privadas são mais eficientes que as públicas. Isto não é verdadeiro na maioria dos casos. As empresas públicas podem, sim, ser eficientes. E o estado pode ser eficiente se o quiser e se a sociedade também o quiser. O que precisamos é acertar na escolha dos nossos mandatários e legisladores, tirando de cena os corruptos e todos aqueles que usam a máquina pública em proveito próprio. Em toda a minha fase de aprendizado passei por instituições públicas* estaduais e depois federal. Agradeço ao povo do meu País por isso.

Os que almejam desestruturar as companhias de água dos estados, talvez remetam à concessão das corporações as nossas escolas, as nossas universidades estaduais e federais, os postos de saúde, as nossas ruas e tudo o mais que for possível. Até o oxigênio que respiramos.

Mas lembrem-se esses comissários das corporações do que aconteceu nos Estados Unidos em 2009. Lá grandes empresas privadas quebraram pela sua incompetência e devido às tropelias da economia. Depois, os antes liberais e arrogantes executivos dos carrões de luxo, foram bater às portas do tesouro, depositário dos impostos do povo norte-americano. Aí então o estado é lembrado. Como sempre, a sociedade como um todo então paga as contas. Lá e cá, a questão é a mesma.

Nunca fui funcionário público. Exerci até função em cargo de confiança e sei o que se passa nos dois lados do balcão. Reclamo por serviço mal feito seja ele da prefeitura, do estado, da união, da companhia de água ou mesmo de uma empresa particular. É um direito meu. Até para exercer esse direito quero ter uma companhia estatal de abastecimento público de água que tenha um gerente na minha cidade. Que ouça as minhas reclamações, os meus protestos, por uma questão de cidadania.

Não é o que acontece com algumas concessionárias privadas de telefonia. Cobram uma taxa fixa aqui de quase sessenta reais mensais, por serviços não realizados, o que é ilegal e a ANATEL, agência reguladora, nada faz para mudar isso. Milhares de usuários estão entregando as linhas de telefonia fixa por esse motivo. É uma espoliação. Em qualquer reclamação, a gente parece um idiota ouvindo as gravações que nos torram a paciência. Na verdade essas empresas gigantescas estão se lixando para uma pessoa comum. O que lhes interessa é apenas o lucro. No outro lado da linha, não tem um gerente, talvez tenha um robô. Mas nós somos ainda de carne e osso. Temos sangue correndo em nossas veias e artérias e queremos ser tratados como gente, não como máquinas.

Por essas coisas, eu desconfio das promessas de melhoria dos serviços de abastecimento de água nas mãos dessas corporações. Falar que as tarifas e qualidade dos serviços dessa turma serão fiscalizados por agência reguladora é outra balela. Uma comissão nomeada por um prefeito é vulnerável às pressões da concessionária. Passa muito dinheiro nesses canais. E aí mora o perigo.

Sinceramente, com todas as falhas, eu ainda sou pela manutenção dos serviços de abastecimento de água nas mãos das nossas companhias estaduais, uma conquista dos brasileiros de diversos estados.


* Estudei em Santa Catarina, cidades de Cunha-Porã e Mondaí.
No Rio Grande do Sul: Em Palmeira das Missões: Escola Agrícola Celeste Gobatto
Viamão: Escola Técnica de Agricultura
Santa Maria: UFSM (Curso de Engenharia Agronômica) 

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