21 de abril de 2011

POR UMA ÉTICA ECOLÓGICA



 Por José Lutzenberger*


             Nestes últimos anos a espécie humana tem andado muito empolgada com a chamada “conquista do Espaço”. Muitos chegam a pensar, inclusive, que o Espaço conquistado vai resolver nossos problemas terrestres – a explosão demográfica por exemplo.
Ainda há os que crêem estarmos prestes a descobrir novos espaços vitais em outros planetas, novos espaços vitais que então poderemos tratar com o mesmo desrespeito, descuido e total irresponsabilidade com que temos tratado nosso belo planeta azul.
Basta, porém, tomar em conta as verdadeiras dimensões do Universo para saber que não será assim. Não temos esta chance – a solução dos problemas temos que encontrar aqui. São os próprios peritos da Conquista Espacial que assim o dizem. Werner Braun, quando chefe da NASA, numa entrevista à revista alemã “Der Spiegel” (nº 7, 1971), ao ser perguntado se a recente viagem à lua tinha contribuído a despertar uma consciência cósmica, respondeu:
- “Estou firmemente convencido de que foi criada uma consciência cósmica. Pelo menos na América se deu o caso que as fotos que os astronautas trouxeram da Lua causaram uma tremenda impressão nos ecólogos daqui. Por quê? Elas nos mostraram pela primeira vez um quadro de nossa minúscula Terra, com as suas limitadas fontes de matéria-prima, sob tênue capa atmosférica, sua vulnerabilidade a abusos. O homem pode ver aí a nave espacial Terra com sua tripulação de três bilhões e meio de astronautas. Tudo aquilo que os ecólogos vinham pregando ficou subitamente bem aparente”.
Efetivamente, todos somos astronautas. Habitamos uma pequena nave espacial, perdida na imensidão do Espaço vazio, hostil à vida. Se uma jóia tem valor pela sua raridade, então este planeta tem para nós um valor incomensurável. Porque, como ele, sabemos que em nosso sistema solar não há outro. Se houver algo parecido no Universo, só a distâncias siderais, totalmente fora do nosso alcance.

Foi necessário que víssemos de bem longe a nossa Terra para que nos déssemos conta da sua fragilidade e vulnerabilidade.
Quer dizer que deveríamos ter com nosso astro o mesmo cuidado, o mesmo carinho que o astronauta tem por sua limitada cápsula. Nossos recursos não são ilimitados. Não temos o direito à pilhagem e à rapina, à destruição irreversível. Em nossas considerações econômicas, tecnológicas e políticas deveríamos tratar de como chegar a sistemas de equilíbrio dinâmico, não de crescimento ilimitado de consumo e esbanjamento sempre maior de nossos recursos. Só deveríamos gastar o que pode ser reposto. Uma serraria que tem à sua disposição uma área limitada de bosque não poderá crescer eternamente, só poderá cortar a cada ano uma quantidade de madeira correspondente ao crescimento anual naquela área, se não ela se acaba por falta de bosque.
Temos que aprender a viver dos juros de nosso capital; não podemos comer nosso capital. Se roermos a substância, acabaremos com o nosso próprio futuro e tornaremos impossível a vida dos nossos descendentes.
No entanto, basta abrirmos os olhos para ver que não estamos agindo como seria lógico para uma espécie que gosta de se chamar Homo sapiens. Nosso atual modo de proceder está demonstrando tudo, menos sabedoria. Estamos agindo como se fôssemos a última geração, como se com nossa morte individual se acabasse tudo. Mais vinte anos como os últimos vinte e já não sobrará muita coisa.

A destruição do ambiente natural pelo homem, hoje, já não se limita, como antes, a certas áreas – localizadas e limitadas, mas é global, total. Está em toda parte, tem uma infinidade de aspectos. Cresce de maneira vertiginosa, em forma de curva exponencial, mas com taxa de crescimento também exponenciada. Se no ano passado o estrago foi talvez dez por cento mais do que no ano anterior, pois este ano será pelo menos quinze ou vinte por cento a mais do que no ano passado. Está perfeitamente claro que esta situação não pode continuar indefinidamente. Nem no livro de matemática a curva exponencial pode ser levada até o infinito.
A vida na Terra, a incrível, a grandiosa Sinfonia da Evolução Orgânica, este processo lento, paciente e implacável que nos deu origem, já dura uns três bilhões de anos! Assim mesmo, durante todo esse espaço de tempo inimaginavelmente longo, nunca houve um cataclisma biológico como o que estamos vivendo. Até mesmo a desaparição dos grandes sáurios no fim do Cretáceo, há uns sessenta milhões de anos, deve ter sido um processo lento e orgânico pois deu possibilidade aos sucessores dos répteis, os mamíferos, de conquistarem os mesmos nichos ecológicos. O mundo saiu daquela crise enriquecido. Mas o que estamos vendo hoje é a devastação total, inclusive dos nichos e de habitantes inteiros.

Neste momento estão caindo as últimas selvas do globo, estão sendo adulterados os últimos rincões da natureza ainda mais ou menos intacta. Nem o fundo do mar escapa. O pior dos terremotos não sabe causar os estragos da terraplanagem, os desbravamentos sem plano, a poluição. Estamos extinguindo comunidades ecológicas completas, comunidades onde cada espécie é única. Estragos, portanto irreparáveis. Cada vez que apagamos uma espécie, são milhões de anos de evolução irremediavelmente perdidos. Com cada espécie perdida para sempre, o mundo acaba mais pobre, e nós, humanos, mais sós.
A causa deste nosso desprezo pelo ambiente natural deve ser procurada em vários fatores, mas principalmente em nossa ignorância quanto à complexidade e vulnerabilidade dos sistemas naturais. Nossa vida urbanizada, dominada por uma tecnologia artificial, nos está alienando quase por completo do mundo natural. Nós imaginamos que podemos viver totalmente isolados da natureza, que sobreviveremos num mundo só de humanos e máquinas, com meia dúzia, talvez, de animais e plantas domésticas.
Temos uma fé inabalável no que costumamos chamar de progresso. Uma fé que o progresso significa eterno crescimento. Esperamos que tudo se torne cada vez maior, abundante, mais rápido, mais eficiente, mais diferente. Queremos sempre o máximo, e assim perdemos o máximo, e assim perdemos de vista o ótimo. Quantidade vale mais que qualidade. O homem tecnológico está tão convencido de sua força que já não vê suas fraquezas.

Daí também nossa total falta de amor e consideração pelos demais seres vivos, nossos companheiros de viagem nesta nave. A ética ocidental, a que hoje domina o mundo, independente de ideologias políticas e religiosas é exclusivamente antropocêntrica, não reserva nenhum lugar para as demais criaturas. A sociedade industrial encara seu ambiente natural, encara todos os seres não-humanos como simples instrumentos dispensáveis dos quais o homem se serve a seu bel-prazer, exterminando-os, inclusive quando lhes parece conveniente. Estes outros seres não estão incluídos em nossa moral. Por isso desrespeitamos e agredimos o ambiente natural de maneira tão inescrupulosa e violenta, a ponto de estarmos hoje pondo em perigo a própria continuação da vida neste astro. Albert Schweitzer, com sua imensa reverência pela vida, caracterizou muito bem sua atitude quando disse:
- “Assim como a dona de casa, que acaba de limpar o quarto, toma o cuidado de fechar a porta, para que o cachorro não venha com o rastro de suas patas estragar a bela obra, assim os pensadores europeus tomam todas as precauções para que não venha a passar algum animal dentro de sua ética”.
Se os demais seres vivos não tem lugar em nossa ética, então não tem importância que acabemos com eles todos. Nós somos os donos da criação.
Também gostamos de imaginar que as obras do homem têm valor, as da natureza não valem nada. Quem danifica uma velha ruína ou uma obra de arte comete um sacrilégio. Mas, quando por um lucro momentâneo ou simplesmente por não gostarmos da coisa por não saber aprecia-la, depredamos uma jóia natural, que a natureza levou talvez milhões de anos para criar, não será talvez um crime muito maior?
Nunca ocorreria a um engenheiro que concebeu uma máquina complicada entrega-la simplesmente ao primeiro que estivesse disposto a divertir-se com ela. Pois é claro que acabaria destruindo complexo mecanismo com ferramentas inadequadas e manejo grosseiro. Ninguém jamais entregaria um computador de última geração a um engraxate que nunca ouviu falar em computadores. A máquina seria valiosa demais para tanto.
Mas é exatamente isso que estamos fazendo com nosso ambiente natural.
As decisões sobre se tal ou qual floresta deverá desaparecer, se este ou aquele banhado será drenado ou aterrado, se naquele rio vamos construir uma grande barragem, se vamos largar dezenas de milhares de toneladas diárias de lixo químico no mar, esgoto e mercúrio em nossos rios e lagos, empregar tal ou qual inseticida sobre uma vasta região, e uma infinidade de outras agressões ao nosso ambiente, estas decisões sumamanente sérias, decisões que deveriam basear-se em profundo conhecimento dos fatores ecológicos, decisões, portanto muito importantes para o nosso próprio bem e para a continuação da vida neste astro, estas decisões normalmente, as deixamos nas mãos de quem nunca ouviu falar de ecologia, de quem não tem noção da complexidade dos problemas ambientais.

Nossa engenharia costuma procurar adaptar o ambiente à tecnologia, ao invés de acomodar a tecnologia ao ambiente. Como o “bulldozer”, insultamos a paisagem para que ela se ajuste à nossa arquitetura, ao invés de enquadrar harmonicamente nossa arquitetura dentro.
Responsável desta atitude é nossa capacidade de abstração. A atitude do especialista que isola seu problema e se concentra completamente em um só aspecto de uma questão. Esta atitude tem sido a base do progresso da ciência e da técnica, mas ela produz efeitos catastróficos quando aplicada ao ambiente. A Biosfera é um complexo sistema de equilíbrio dentro de equilíbrio, que por sua vez fazem parte de equilíbrios ainda maiores. Para compreender nosso ambiente, temos que encarar o todo, temos que ver a dinâmica dos sistemas naturais, temos que aprender a ver o homem como parte deste processo complexo.

 O especialista que introduziu o chumbo na gasolina entendia muito de motores a explosão, mas sua responsabilidade terminava no cano de escape. O técnico de saúde pública que, de avião aplica um poderoso inseticida sobre todo um banhado, só está vendo aquele mosquito que ele quer liquidar, mas é totalmente cego às milhares de outras espécies, muitas das quais diretamente úteis ao homem. Se a polícia agisse dessa maneira, então para liquidar meia dúzia de bandidos, teria que tratar toda a cidade com gases venenosos. O método seria bastante eficiente contra os bandidos.
            Uma vez, como técnico em produtos fitosanitários, visitei um agricultor grande produtor de maçãs. Entre os mais de trinta tratamentos químicos a que submetia os pomares em cada temporada – não consigo compreender como aquele solo não estava totalmente estéril – usava inseticidas, fungicidas, acaricidas, herbicidas, hormônios, nematicidas, rodenticidas e desinfetantes, além de repelentes, toda a gama enfim. Entre estes produtos estava também usando um produto extremamente perigoso, proibido na grande maioria dos países. Atrevi-me a sugerir que o substituisse por outro menos perigoso, se bem que mais caro. Olhou-me surpreso, e disse:
-          “Mas o que o senhor quer? Eu nunca como minhas maçãs!”
Outro aspecto importante da atual crise ecológica é o aspecto quantitativo. Algumas décadas atrás praticamente não se falava em poluição. Muito pouco se dizia sobre degradação ambiental. Mas as fábricas, então, eram tão poluidoras, ou até mais que hoje. A destruição do ambiente pelo homem, qualitativamente não era menor. O que mudou de lá pra cá são as ordens de magnitude. Não somente somos muito mais numerosos hoje, somos também muito mais violentos, cada um, quanto a impacto ambiental.
Antigamente os poucos colonos entravam no mato com machados. Em cem anos avançavam 100 Km. Hoje o caboclo e o sertanejo espalham a agricultura de rapina e o fogo pelo último sertão. Milhares de tratores derrubam em poucos meses áreas de florestas que antes não se conseguia arrasar em décadas. As novas fábricas de polpa apesar de custosíssimas instalações de recuperação de efluentes, são tão grandes que a reduzida porcentagem de poluição representa muito mais que a soma da poluição de antigas fabriquetas.

O impacto do homem moderno sobre o seu ambiente se torna cada dia mais brutal, mais irreversível, já ultrapassando a capacidade de recuperação da Natureza. Se quisermos sair da atual crise ecológica que a humanidade trouxe sobre si mesma, e se não sairmos não teremos futuro, vamos necessitar de uma moral mais ampla e completa, de uma ética ecológica. Temos que aprender a ver o todo. Temos que nos livrar desse velho preconceito ocidental da idéia que o homem é o centro do Universo, de que toda a criação está aqui para nos servir, de que temos o direito de usá-la e abusá-la sem sentido algum de responsabilidade. Temos que nos libertar da idéia de que todos os outros seres só tem sentido e função de sua utilidade imediata para o homem. Como queria Albert Schwitzer, nossa ética terá de incluir toda a criação.
Precisamos de uma nova copernicana que ponha o homem em seu lugar, que o faça descer de seu falso pedestal. Se a natureza nos deu uma inteligência que nos possibilita este tremendo poder que agora temos sobre tudo o que vive, e sobre a totalidade do ambiente, esse poder, poder de tomar em nossas mãos a continuação da evolução ou de acabar com ela, significa também uma tremenda responsabilidade.
Não estamos fora, por cima ou contra a natureza, estamos bem dentro dela. Somos uma parte dela.
 E para terminar quero trazer mais uma citação. Trata-se da palavra de Gene Setzer, presidente da National Audubon Society, uma antiga sociedade conservacionista dos Estados Unidos; que já conta com milhões de membros e tem créditos de grandes sucessos conservacionistas. Dizia Setzer:
- “Nós fomos criados em 1905 com o fim específico de salvar uma espécie ameaçada, a garça, que estava sendo exterminada pelos caçadores de plumas. Mas esta é ainda nossa intenção – salvar uma espécie ameaçada, só que hoje essa espécie é o próprio homem”.

 Texto editado por ocasião da Fundação da AGAPAN, em 1971.
*In memorian.

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