23 de julho de 2010

ALTERAÇÃO DO CÓDIGO FLORESTAL - NOTA TÉCNICA DO MPF


Nota técnica que expede a 4ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal acerca do substitutivo ao Projeto de Lei nº 1.876/1999, apresentado pelo Deputado Aldo Rebelo à Comissão Especial destinada a proferir parecer sobre o referido PL, que altera o atual Código Florestal, Lei n.º 4.771/65.
A presente Nota Técnica manifesta e fundamenta a posição contrária da 4ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal ao substitutivo ao Projeto de Lei nº. 1.876/1999 apresentado pelo Deputado Aldo Rebelo à Comissão Especial instituída para proferir parecer sobre projetos de lei que alteram o Código Florestal (Lei 4.771/65) (1)

Conforme será exposto ao longo dessa Nota as propostas de modificação da legislação fragilizam a proteção do meio ambiente, diminuindo drasticamente o padrão de proteção ambiental atualmente proporcionado pela legislação em vigor, contrariando as obrigações constitucionais impostas ao Poder Público para assegurar a efetividade do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

1. Exclusão de ambientes atualmente caracterizados como de preservação permanente.

Os topos de morros, montes, montanhas e serras deixarão de ser considerados área de preservação permanente. Essas áreas são especialmente relevantes para garantir a estabilidade das encostas, o que as torna de extrema importância para o bem-estar da população tendo em vista os desastres envolvendo deslizamento de encostas em época de chuvas, como verificado durante todo o verão de 2010 em diversos estados da federação.

Também perderão a proteção, locais com altitudes superiores a 1.800m, áreas em que é comum a ocorrência de espécies raras e endêmicas. Vale ressaltar que esses ambientes são pouco comuns no Brasil. Em estimativa dos analistas periciais do Ministério Público Federal com o uso do software ArcView, a partir de dados da Base Cartográfica Digital do IBGE, escala 1:1.000.000, de 2003, chegou-se a apenas 1.015 km² (101.548 hectares) de áreas com altitudes superiores a 1.800 metros, a maior parte situada na serra da Mantiqueira, na divisa dos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Considerando que o Brasil
continental possui área de 8.514.876,59 km² (851.487.659 hectares), as áreas com altitudes superiores a 1.800 metros representam 0,01% desse território. Em função de sua relevância ambiental e cênica, a maior parte das áreas com altitudes superiores a 1.800 metros do Brasil encontra-se também protegida por unidades de conservação federais. É o caso das áreas dos Parques Nacionais de Itatiaia, da Serra da Bocaina, da Serra dos Órgãos, do Caparaó, da Chapada dos Veadeiros, do Pico da Neblina, do Monte Roraima e das Áreas de Proteção Ambiental da Serra da Mantiqueira e de Petrópolis. A eliminação da proteção das áreas com altitudes superiores a 1.800m, sob a forma de áreas de preservação permanente, possibilitará o uso alternativo daquelas localizadas fora das unidades de conservação de proteção integral, em prejuízo aos ecossistemas nelas existentes.
 (1)A presente Nota Técnica foi elaborada a partir das conclusões do Parecer Técnico nº 204/2010, de autoria dos analistas periciais em Engenharia Florestal Denise Christina de Rezende Nicolaidis e Marcos Cardoso Garcia

As restingas, em uma faixa de 300 metros a partir da linha preamar máxima, também deixarão de ser protegidas sob a forma de área de preservação permanente, possibilitando a sua ocupação por empreendimentos e equipamentos urbanos, com irreparáveis prejuízo ao patrimônio paisagístico que ainda resta do nosso litoral brasileiro. É preciso mencionar, por outro lado, que as restingas possuem importante papel na fixação do substrato arenoso, sujeito à ação erosiva do vento evitando problemas de bloqueio de estradas e invasão de habitações, além de atenuar o assoreamento de brejos, lagunas e canais. A cobertura vegetal contribui ainda para manter o substrato permeável, permitindo que a água das chuvas alimente o lençol freático, cujo nível garante o fornecimento de água potável e a manutenção do nível dos corpos d’água. A retirada da vegetação desse ambiente pode acarretar a lavagem acelerada dos nutrientes, com seu carreamento para as profundezas do solo, fora do alcance das raízes da vegetação, num processo de empobrecimento gradual do sistema. Em estágios mais avançados de degradação, o solo pode sofrer intensa erosão pelos ventos, o que pode ocasionar a formação de dunas móveis – um grave risco para o ambiente costeiro e, particularmente, para a população da faixa litorânea(2).

As acumulações naturais ou artificiais de água com superfície inferior a 1 ha serão dispensadas de possuírem faixa de preservação permanente em seu entorno (art.3º, § 4º).
Diversas lagoas marginais aos rios, de importância como berçário para diversas espécies, encontram-se nessa situação. A retirada dessa proteção permitirá, por exemplo, o avanço de atividades antrópicas, aí incluída a agricultura, todos os insumos que a acompanham, e a construção de edificações, seus sistemas de disposição de resíduos, até o limite dessas acumulações, o que certamente trará prejuízo a esses ambientes.

Os Estados poderão, no âmbito de programa de regularização ambiental criado pela proposta, dispensar a recuperação das áreas de preservação permanente localizadas em áreas rurais consolidadas, o que representa a possibilidade de completa supressão desses espaços territoriais especialmente protegidos. Até que tais programas sejam implementados pelos Estados ou pelo Distrito Federal ficará também assegurada a manutenção das atividades agropecuárias e florestais em áreas rurais consolidadas, localizadas em área de
preservação permanente e áreas com declividade entre 25º e 45º.Por fim, será facultado aos Estados e ao Distrito Federal diminuir em até 50% as áreas de preservação permanente definidas na lei.

(2)Ciência Hoje. Vol. 06 N.º 33

2. Flexibilização das normas atualmente vigentes acerca das áreas de preservação
permanente.
O referencial para demarcação da faixa de preservação permanente às margens de rios será alterado do leito maior para o leito menor. Essa alteração reduzirá consideravelmente a extensão da área atualmente protegida às margens dos rios, sendo possível inclusive que, em função de características topográficas, ocorra uma redução maior que a própria faixa. A redefinição proposta acarretará a possibilidade de ocupação do leito maior de cursos d'água por atividades antrópicas e até mesmo por assentamentos humanos. Como o leito maior é sujeito a inundações no período de cheias, é de se esperar o aumento de casos de danos materiais, além do risco à vida humana.

As faixas de áreas de preservação permanente às margens de rios cuja largura será 15m (art. 3º, inciso I, alínea “a”), ao invés dos 30m atualmente previstos como faixa mínima, poderão ser reduzidos em até 50% pelos Estados (art. 3º, § 1º). Com isso, na prática, a faixa mínima de proteção às margens de rios poderá ser de 7,5m. Esse valor não tem uma justificativa técnica que forneça garantias de que a proteção das margens será obtida com essa faixa de proteção.

A largura da área de preservação permanente no entorno de reservatórios artificiais passará a ser definida pelo órgão ambiental no âmbito do licenciamento de cada empreendimento (art. 3º, Inciso III; art. 4º). As faixa mínimas propostas, de 30m em área rural e de 15m em área urbana, são inferiores às faixas atualmente definidas na Resolução Conama 302/2002.

Propõe-se a distinção entre nascente e olho d'água (art. 2º, incisos XI e XII), considerados sinônimos pelo Código Florestal vigente. A partir dessa distinção, poderá ser permitida a interferência em áreas de preservação permanente ao redor de nascentes intermitentes. Enquadram-se nesses casos as diversas restrições impostas à intervenção ou supressão em áreas de preservação de nascentes previstas na Resolução Conama 369/2006, tais como a vedação de intervenção em nascente por atividades de interesse social, a vedação de intervenção para a extração de rochas para uso direto na construção civil e o condicionamento da intervenção à outorga do uso da água.

A definição de vereda adotada no substitutivo (art. 2º, inciso XVII) reduzirá a proteção atualmente vigente. O conceito da Resolução nº. 303/2002 do CONAMA, descrevendo o espaço, e inclusive o vinculando à ocorrência de nascentes e cabeceiras de cursos d'água, é mais apropriado à proteção ambiental desejada. Ao invés de caracterizar o espaço protegido, o substitutivo descreve a fitofisionomia. O conceito utilizado parece ter sido adaptado de Ribeiro e Walter (1998)(4), no entanto, deixa de observar que esses autores fazem distinção da fitofisionomia vereda de Palmeiral, no qual incluem o subtipo Buritizal, o que, se é pertinente em termos de fitofisionomia, não o é em termos de definição de espaços protegidos, uma vez que a fisionomia buritizal, tal como fisionomia vereda, também ocorre associada a solos brejosos ou encharcados, em fundos de vale, porém apresentando dossel. A proteção a ser conferida aos buritizais e a esses espaços brejosos deve ser idêntica à das veredas, uma vez que devem ser protegidos em toda a sua extensão, e não em faixas marginais, dada a fragilidade e importância ecológica desses ecossistemas como um todo.

(3) Vereda - espaço brejoso ou encharcado, que contém nascentes ou cabeceiras de cursos d'água, onde há ocorrência de solos hidromórficos, caracterizado predominantemente por renques de buritis do brejo (Mauritia flexuosa) e outras formas de vegetação típica.


(4)RIBEIRO, J. F.; WALTER, B. M; T. Fitofisionomias do bioma Cerrado. In: SANO, S. M.; ALMEIDA, S. P. De; RIBEIRO, J.F. Cerrado: ecologia e flora. Embrapa Cerrados. - Brasília. Embrapa Informação Tecnológica, 2008. p. 151-212.


3. Áreas de preservação permanente nos ambientes urbanos.

O conceito de área urbana consolidada (art. 2º) tornará mais permissiva a ocupação e o uso alternativo de áreas de preservação permanente urbanas. Os critérios de reconhecimento da área urbana consolidada, que não incluirão a exigência de que a área já seja habitada, permitem a criação de áreas urbanas “consolidadas” a qualquer tempo, independentemente da existência prévia da ocupação, possibilitando a abertura de novos assentamentos urbanos em áreas de preservação.

As áreas de preservação permanente em áreas urbanas consolidadas passarão a ser definidas nos Planos Diretores e leis de uso do solo do município. Se o município desejar suprimi-las não haverá impedimento, uma vez que não há previsão de um padrão mínimo de proteção.

O substitutivo, se aprovado, permitirá a implantação de infraestrutura de esportes, lazer e atividades educacionais e culturais ao ar livre, nas áreas de preservação permanente situadas em áreas urbanas consolidadas, o que significará a supressão de áreas de preservação para dar lugar, por exemplo, a estádios; clubes esportivos ou recreativos; escolas; fundações culturais; etc. Não há sequer a previsão da obrigatoriedade de inexistência de alternativa locacional para tais atividades. Note-se que não se trata da regularização de equipamentos já implantados, mas da permissão para novos se instalarem.

4. Propostas de modificação quanto à Reserva Legal.

Propõe-se eliminar a exigência da Reserva Legal para imóveis rurais com área de até quatro módulos fiscais (art. 14). Na Amazônia Legal, onde significativa parte do território tem o módulo fiscal definido em 100 hectares, propriedades com até 400 ha ficarão dispensadas de manter em seu interior área vegetada, estimulando o desmatamento. Considerando áreas de floresta, com Reserva Legal de 80% da área, seria possível o desmatamento de até 320 ha por propriedade com área igual ou superior a 4 módulos fiscais. Nessas condições, como propriedades rurais com área de até 400 hectares poderão ser totalmente desmatadas um conjunto de pequenas propriedades rurais, ocorrentes na mesma região, resultando em extensas áreas degradadas.

Será exigida Reserva Legal apenas para a porção do imóvel que exceder a quatro módulos fiscais (art. 14, §1º). Assim, haveria a redução de Reserva Legal em área correspondente a, no mínimo, 0,8 módulos fiscais (20% de 4 módulos) por propriedade rural, podendo-se chegar a 3,2 módulos fiscais (80% de 4 módulos), para cada propriedade rural localizada em área de floresta da Amazônia Legal.

Fazendo uma projeção apenas para os estados situados na região Norte (Acre, Amazonas, Amapá, Pará, Rondônia e Roraima) a introdução desse dispositivo será responsável pela redução de cerca de 71.000.000 ha (setenta e um milhões de hectares) de área protegida(5), área que é superior ao somatório de todas as unidades de conservação federais situadas na Amazônia Legal, de proteção integral e uso sustentável (61.598.042 ha) (6)



(5) Para essa estimativa foi considerado que os imóveis estão localizados em área com formações florestais, com Reserva Legal de 80% da área, exceto para o estado de Roraima em que foi considerada a formação savânica e Reserva Legal de 35%. O número de propriedades por área de módulo fiscal em cada estado foi obtido a partir de dados disponibilizados pelo Incra
 2, acessado em 18 junho de 2010). Acre: 14.265 propriedades com módulo fiscal de 100 há e 7450 com módulo fiscal de 70 ha;
. Se considerada a possibilidade de existência de uma infinidade de posses, não cadastradas pelo Incra, a redução da área protegida poderá ser ainda maior.

O fato de a dimensão do módulo fiscal variar não apenas no espaço, mas também no tempo, uma vez que a área do módulo de cada município pode ser alterada pelo INCRA levará a alterações constantes na área da Reserva Legal das propriedades, sem que isso seja associado a variáveis ambientais.

Será permitido o plantio de espécies exóticas na recomposição da reserva legal de acordo com critérios técnicos gerais estabelecidos em lei estadual ou do Distrito Federal (art. 25, §

2º). Tal medida promoverá a descaracterização da vegetação nativa das Reserva Legais assim recompostas. No Código atual, a recomposição deve ser apenas com espécies nativas, possibilitando o plantio de exóticas somente de modo temporário como pioneiras, visando à restauração do ecossistema original.

A localização da Reserva Legal no interior do imóvel será de livre escolha do proprietário ou possuidor, salvo quando houver prévia determinação de sua localização pelo órgão competente do Sisnama (art. 15). O Código Florestal vigente prevê que a localização da RL deve ser aprovada pelo órgão estadual competente, municipal ou outra instituição habilitada devendo ser considerados no processo de aprovação a função social da propriedade e os benefícios ambientais da localização.

 Será permitido o cômputo das áreas de preservação permanente no percentual de Reserva Legal (art. 16), podendo haver situação em que as áreas de preservação existentes na propriedade sejam suficientes ou próximas do percentual previsto para a região. O Código atual admite esse benefício apenas para casos em que a soma da vegetação nativa em área de preservação permanente e da Reserva Legal exceder a oitenta por cento da propriedade rural localizada na Amazônia Legal; cinquenta por cento da propriedade rural localizada nas demais regiões do País; vinte e cinco por cento da pequena propriedade assim considerada
aquela com 50 ha, se localizada no polígono das secas ou a leste do Meridiano de 44º W, do Estado do Maranhão, ou 30 ha, se localizada em qualquer outra região do País.

 Será permitida a compensação de Reserva Legal mediante a doação ao Poder Público de área localizada no interior de Unidade de Conservação (art.25, III), promovendo uma redução substancial da proteção de vegetação nativa. Cabe mencionar que o Ministério Público Federal ajuizou a ação direta de inconstitucionalidade nº 4367 em face do § 6º do art. 44 da Lei 4.771/65, com a redação que lhe foi conferida pela Lei 11.428/2006, que permite aos proprietários rurais a desoneração do dever de manter em sua propriedade reservas florestais legais, mediante doação de área de terra localizada no interior de unidade de conservação, pendente de regularização fundiária.

(6)Amazonas: 17.899 propriedades com módulo fiscal de 100 há, 41.512 com módulo fiscal de 80 há e 2.899 com módulo fiscal de 10 há; Amapá: 3.948 propriedades com módulo fiscal de 70 ha e 5.947 com módulo fiscal de 50 ha; Pará: 49.599 propriedades com módulo fiscal de 75 ha, 42.426 com módulo fiscal de 70 ha, 7.084 com módulo fiscal de 65 ha, 27.627 com módulo fiscal de 55 ha, 2.196 com módulo fiscal de 50 ha, 731 com módulo fiscal de 7 ha e 148 com módulo fiscal de 5 ha; Rondônia: 77.396 propriedades com módulo fiscal de 60 há; Roraima: 16.522 propriedades com módulo fiscal de 100 ha e 10.270 com módulo
fiscal de 80 ha..  http://www.socioambiental.org/uc/quadro_geral, acessado em 18 de junho de 2010



(7) em função do tipo de exploração predominante, da renda obtida com a exploração, de outras explorações existentes
no município que, embora não predominantes, sejam significativas em função da renda ou da área utilizada, do conceito de agricultura familiar,


Com a instituição de Cotas de Reserva Legal - CRA, áreas em que, por características próprias de localização, nunca seriam desmatadas, poderão ser negociados para a compensação de áreas em que a Reserva Legal não foi averbada. Com isso, ao final, tem-se a redução da proteção ambiental, porque a aquisição da CRA não está vinculada à mesma fitofisionomia, equivalência em importância ecológica, ou localização no mesmo estado e na mesma bacia hidrográfica que a Reserva Legal que se deseja compensar. O Substitutivo admite a CRA para a compensação de Reserva Legal de imóveis situados no mesmo bioma
(art. 41, parágrafo 3º). O conceito de bioma é muito amplo levando a situações em que CRA de propriedade localizadas no bioma Mata Atlântica pode ser utilizada para compensar Reserva Legal de outra localizada em qualquer um dos 15 estados da federação em que ocorre Mata Atlântica, por exemplo.

Acerca dos mecanismos de compensação, é preciso ter claro que os objetivos das áreas de preservação permanente, das reservas legais e das unidades de conservação, embora complementares, não se confundem (8).

 De acordo com Campos (2006b), as APP, as RL, e outras áreas legalmente protegidas, além de contribuírem para a preservação de ecossistemas, são importantes para aumentar a expressividade das Unidades de Conservação, sendo que o conjunto dessas áreas configura uma estratégia “expandida” de valorização da biodiversidade. Como é amplamente sabido (PRIMACK & RODRIGUES,
2001; PAGLIA et al, 2006; PINTO et al, 2006 ROCHA et al, 2006; BENSUSAN, 2006), a conservação da biodiversidade não se faz somente nos locais restritos das áreas protegidas pelas Unidades de Conservação. Por essa razão, o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) previu dois outros conceitos relevantes para a gestão de UCs. São eles: a zona de amortecimento e o corredor ecológico, que representam um esforço para levar a conservação da biodiversidade para além dos limites da UC. A zona de amortecimento, prevista no SNUC, tem como ideia central o fato de que o uso de recursos naturais no entorno da Unidade pode vir a comprometer os processos ecológicos que geram e mantêm a biodiversidade que se quer conservar. Já os corredores ecológicos procuram mitigar o efeito da fragmentação dos ambientes naturais a qual prejudica ou mesmo inviabiliza a manutenção da biodiversidade em função da redução e isolamento dosecossistemas. Os corredores propiciam a conectividade(9) entre as áreas conservadas e garantem a variabilidade genética das populações silvestres, que permite a evolução e sobrevivência das espécies (em última análise). Portanto, a busca de conectividade entre fragmentos de vegetação traz os benefícios necessários a uma proteção efetiva da biodiversidade. Deve ser levado em consideração que os processos de isolamento dos remanescentes de ecossistemas, conhecidos como fragmentação e insularização, produzem várias mudanças qualitativas fáceis de predizer, conforme destacado por Bierregaard, et al. (1992), Campos & Agostinho (1997) e Primack & Rodrigues (2001) apud Campos (2006a), entre as quais podem ser citadas:

acarreta a redução de populações silvestres, com consequências genéticas deletérias, aumentando a probabilidade de extinção de espécies, devido à menor capacidade de adaptação a mudanças naturais ou antropogênicas do ambiente; considerando que a distribuição das populações não é homogênea; certas espécies podem não estar presentes em determinados fragmentos ambientais simplesmente porque não




(8) O trecho a seguir foi retirado da IT n.º 76/09 – 4a CCR.
(9) Conectividade pode ser definida como a capacidade da paisagem (ou das unidades da paisagem) de facilitar os fluxos biológicos. A conectividade depende da proximidade dos elementos de habitat, da densidade de corredores e “stepping stones” (pontos de ligação ou trampolins ecológicos que facilitam o fluxo gênico entre fragmentos de vegetação) e da permeabilidade da matriz ambiental (METZGER, 2001).

“acharam o caminho” (dispersão) antes dos ecossistemas serem isolados; a fragmentação de habitat aumenta a vulnerabilidade dos fragmentos de vegetação à invasão de espécies exóticas e espécies nativas invasoras;
espécies que requerem grandes habitats podem não sobreviver em pequenos fragmentos.

4. Normas sobre o passivo ambiental: o Programa de Regularização Ambiental (PRA)

O substitutivo cria o denominado Programa de Regularização Ambiental - PRA para áreas que tiveram vegetação nativa suprimida antes de 22 de julho de 2008. A justificativa para o estabelecimento desse marco temporal é a entrada em vigor do Decreto 6.514/2008, que dispõe sobre as infrações e sanções administrativas ao meio ambiente. Ocorre que as infrações administrativas especificadas nesse Decreto já eram disciplinadas pelo Decreto nº 3.919, de 14 de setembro de 2001 e classificadas como crimes na lei 4.771/65. Assim, o marco temporal estabelecido é aleatório e beneficia indiscriminadamente todos os que
infringiram a legislação ambiental. Essa postura contribui para o fortalecimento da cultura de desrespeito à legislação e contraria os esforços que os órgãos públicos brasileiros e a própria sociedade têm empreendido para conferir efetividade à legislação ambiental.

Os Programas de Regularização Ambiental deverão ser elaborados pelos Estados e Distrito Federal e disporão sobre a adequação ambiental dos imóveis rurais. A União elaborará os programas de recuperação ambiental apenas nas áreas de seu respectivo domínio. O substitutivo não define o órgão responsável pela elaboração do PRA no âmbito do Poder Executivo, abrindo possibilidade para a desconsideração dos órgãos integrantes do Sisnama. Quanto à delegação de elaboração do PRA aos Estados, cumpre observar que a Constituição Federal estabelece ser competência comum da União, dos Estados e dos Municípios “proteger as florestas, a fauna e a flora”, cabendo a leis complementares fixar normas para a cooperação entre as unidades da federação, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional.
O substitutivo altera por completo o regime vigente acerca da responsabilidade pela recuperação dos danos ambientais, transferindo ao poder público a responsabilidade primordial pela recuperação ambiental de áreas ilegalmente degradadas: ao elaborar o programa de recuperação ambiental, os estados deverão indicar o orçamento dos investimentos realizados, as fontes de recursos e o cronograma de implementação. Os proprietários rurais, por sua vez, terão a forma de participação e contribuição definida no Programa, ficando desobrigados de adotar qualquer medida de recomposição de vegetação suprimida ilegalmente até que o Programa de Regularização Ambiental, assim o determine.
O substitutivo não apresenta formas para garantir a adesão dos proprietários e possuidores ao Programa de Regularização, prevendo apenas que eles participarão e contribuirão na sua implementação, sem estabelecer qualquer obrigação mínima.

5. Normas para o passivo ambiental: suspensão de penalidades aplicadas

 O substitutivo prevê que a partir da realização do Cadastro Ambiental, o proprietário ou possuidor não poderá ser autuado por infrações aos arts. 2º, 3º, 4º, 10, 16, 19, 37-A e 44 e das alíneas a, b e g do art. 26 da Lei nº 4.771, 15 de setembro de 1965, cometidas na respectiva propriedade ou posse antes de 22 de julho de 2008, ficando as multas já aplicadas, suspensas.

 Essa proposta confere verdadeira anistia àqueles que desrespeitaram as leis na vigência da legislação anterior. É importante ressaltar que muito embora o Decreto nº 7.209/2009 já estabelecesse um mecanismo de suspensão da aplicação de multas e incidência de novas autuações, tais medidas eram condicionadas à efetiva recuperação ambiental e averbação da Reserva Legal. O que propõe o texto do substitutivo apresentado à Comissão Especial é que a suspensão de multas serão condicionadas apenas ao “cadastro
ambiental” do proprietário junto aos órgãos competentes, sem qualquer compromisso com a efetiva recuperação ambiental.

 A esse respeito, é importante mencionar que a própria Constituição Federal é que determina a imposição de sanções penais e administrativas às condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente, bem como a obrigação de reparar os danos causados.

6. Conclusão

O projeto de lei altera por completo a sistemática vigente acerca das áreas de preservação permanente, das reservas legais e o sistema de responsabilização pela recuperação das áreas cuja vegetação foi suprimida ilegalmente. São excluídas categorias de áreas de preservação, diminuídas as faixas de proteção atualmente definidas e criada a possibilidade de autorização para a consolidação de ocupações irregulares em áreas urbanas e rurais, além da diminuição em até 50% dos percentuais de proteção definidos pela legislação federal.
Quanto à reserva legal, deixará de ser obrigatória para propriedades com até 04 módulos fiscais, será permitida a inclusão das áreas de preservação permanente no computo do percentual a ser protegido, bem como sua recomposição com espécies exóticas.
Para se ter idéia da magnitude dos danos ambientais associados à proposta, tratando do impacto de somente uma das modificações - a dispensa de reserva legal em propriedades com até 04 módulos fiscais - e em uma projeção apenas para os estados situados na região Norte (Acre, Amazonas, Amapá, Pará, Rondônia e Roraima) poderá haver a redução de cerca de 71.000.000 ha (setenta e um milhões de hectares) de área protegida, área que é superior ao somatório de todas as unidades de conservação federais situadas na Amazônia Legal, de proteção integral e uso sustentável (61.598.042 ha)

. Se considerada a possibilidade de existência de uma infinidade de posses, não cadastradas pelo Incra, a redução da área protegida poderá ser ainda maior.

(10) Para essa estimativa foi considerado que os imóveis estão localizados em área com formações florestais, com Reserva Legal de 80% da área, exceto para o estado de Roraima em que foi considerada a formação savânica e Reserva Legal de 35%. O número de propriedades por área de módulo fiscal em cada estado foi obtido a partir de dados disponibilizados pelo Incra (http://www.incra.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=category&layout=blog&id=153&Itemid=18
2, acessado em 18 junho de 2010). Acre: 14.265 propriedades com módulo fiscal de 100 há e 7450 com módulo fiscal de 70 ha; Amazonas: 17.899 propriedades com módulo fiscal de 100 há, 41.512 com módulo fiscal de 80 há e 2.899 com módulo fiscal de 10 ha; Amapá: 3.948 propriedades com módulo fiscal de 70 ha e 5.947 com módulo fiscal de 50 ha; Pará: 49.599 propriedades com módulo fiscal de 75 ha, 42.426 com módulo fiscal de 70 ha, 7.084 com módulo fiscal de 65 ha, 27.627 com módulo fiscal de 55 ha, 2.196 com módulo fiscal de 50 ha, 731 com módulo fiscal de 7 ha e 148 com módulo fiscal de 5 ha; Rondônia: 77.396 propriedades com módulo fiscal de 60 há; Roraima: 16.522 propriedades com módulo fiscal de 100 ha e 10.270 com módulo fiscal de 80 ha..
(11) http://www.socioambiental.org/uc/quadro_geral, acessado em 18 de junho de 2010




 Em prejuízo da segurança jurídica e demonstrando o total desprestígio aos milhares de agricultores que cumpriram a legislação vigente, o substitutivo propõe a suspensão de multas ambientais aplicadas e impede autuações para supressões ilegais de vegetação ocorridas até 22 de julho de 2008. Essa verdadeira anistia é desacompanhada de qualquer medida de recuperação ambiental, sendo vinculada apenas ao preenchimento de um cadastro ante ao órgão ambiental competente.
O conjunto das modificações propostas e analisadas nessa Nota Técnica contrariam frontalmente as disposições constitucionais que tratam das obrigações do Poder Público para dar efetividade ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e, se aprovadas pelo Congresso Nacional, colocarão em risco não somente o equilíbrio ambiental, mas o bem estar da população, especialmente de sua parcela mais desprovida de recursos.

Brasília, 28 de junho de 2010





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