28 de novembro de 2010

NUVEM ASSASSINA II

Por Darci Bergmann




Agrotóxicos: Da lavoura até os nossos lares.

Com o surgimento dos pesticidas, a humanidade foi levada a crer que muitas mazelas seriam eliminadas. As colheitas seriam mais fartas, vetores de doenças seriam controlados e as habitações estariam livres de insetos e outros bichos indesejáveis. A formas de aplicação de tais produtos se diversificaram. E os equipamentos também. A biotecnologia, na sua variante dos transgênicos, ampliou o leque de uso de alguns princípios ativos. Este é o caso do glifosato, dessecante agora usado na cultura da soja.

Por outro lado, surgiram as preocupações sobre os efeitos colaterais no meio ambiente e sobre a saúde humana.

As limitações de uso, informações toxicológicas e cuidados no manuseio constam das bulas e rótulos. A legislação que regulamenta o uso de agrotóxicos, também denominados agroquímicos, defensivos, pesticidas ou venenos, evoluiu muito nas últimas décadas. À primeira vista parece que a sociedade dispõe de mecanismos de controle de tais substâncias e que essas já não causam mais os problemas antes verificados. Mas será possível afirmar, com segurança, que estamos livres dos problemas do mau uso dos agrotóxicos?

Veneno de lavoura aplicado em pessoas.

Se, por um lado, ocorreu o banimento de alguns produtos, como é o caso dos inseticidas organoclorados, estes de alta persistência no ambiente, por outro surgiram os tipos mais brandos, caso dos piretróides sintéticos. Tudo parecia se encaminhar para o uso seguro da agroquímica. Os piretróides e outros grupos de agrotóxicos não se restringiram à agropecuária. Chegaram às prateleiras dos supermercados e das farmácias. Foram e ainda são borrifados nos domicílios e acreditem, nas cabeças das pessoas afetadas por piolhos. Isto mesmo. Nas farmácias é possível encontrar agrotóxico deltametrina, do grupo dos piretróides, registrado para o combate ao piolho humano. Os agrotóxicos usados em ambientes domiciliares, recebem o nome de domissanitários e agora fazem parte do que se chama saneamento ambiental. Na verdade, tudo isso é uma maquiagem que tenta acobertar o lado obscuro dos efeitos colaterais de tais produtos. Esses efeitos podem não ser de toxidez aguda, aquela que se manifesta na hora do manuseio, mas podem ser de longo prazo. Muitos desses agrotóxicos tem ação crônica, causam efeitos neurotóxicos e estados depressivos. Alguns agrotóxicos, incluindo os piretróides, agem como hormônios femininos sintéticos, causando feminilização dos machos. Já existem estudos que demonstram tais fatos. Somados a outros agentes químicos de uso cotidiano, tais como os aditivos dos plásticos, detergentes, etc. pode-se ter uma idéia da variedade imensa de substâncias presentes no ambiente, com efeitos ainda desconhecidos. Ouve-se muito falar que cada produto, antes de ser lançado no mercado, é exaustivamente estudado. São testados em cobaias, estas com ciclo de vida mais curto que o da espécie humana. Também a persistência ambiental é analisada. Mas no momento de se fazer o registro junto à ANVISA ou junto ao MAPA podem ocorrer omissões sobre alguns comportamentos dos produtos. Alguns princípios ativos decompõem-se pela ação microbiana do solo, ou pela ação da luz solar e do calor. Mas a decomposição do produto original pode resultar em outros compostos com efeitos desconhecidos.



Os agrotóxicos espargidos nas lavouras se espalham por todo o ambiente.


Na agricultura, é comum a mistura de diversos pesticidas, muitas vezes em desacordo com as recomendações dos fabricantes. Produtos não registrados para determinadas culturas são nelas aplicados por conveniência de vendedores, que não se preocupam com as questões ambientais envolvidas. Via terrestre ou via aérea, os agrotóxicos espargidos sobre os cultivos não se limitam a combater invasoras, pragas e moléstias. Percorrem caminhos que vão além desses limites. Ultimamente, tem diminuído o volume de água nessas aplicações. Isso representa economia de tempo e redução de custos ao usuário. No entanto, isso também significa que as gotas de água que espalham o princípio ativo sobre a lavoura tem tamanho menor e algumas, muito diminutas, não atingem a área pulverizada, flutuando no espaço, arrastadas pelas correntes de ar. É o efeito da DERIVA. Já foram feitos vários estudos sobre o efeito deriva e de como atenuá-lo, visando maior eficiência dos agrotóxicos e diminuição dos impactos ambientais. Sabe-se que altas temperaturas do ambiente, no momento da aplicação, provocam a movimentação das moléculas do ar, com correntes ascendentes. Na primavera e verão são comuns na região da campanha temperaturas em torno dos 40ºC, após o meio-dia. Nesses horários, com o sol quase a pino, é possível ver a distorção das imagens pela movimentação do ar, mesmo que não haja vento perceptível. Em anos anteriores, nos trabalhos a campo, com teodolito ou nível, havia dificuldade de operar à longa distância, pois as imagens da baliza ou da mira falante pareciam distorcidas e a leitura não era confiável. Essa movimentação intensa do ar, pelas altas temperaturas, limita a aplicação dos agrotóxicos. Além disso, nesses horários mais quentes, a umidade relativa do ar é mais baixa. Com isso as gotas de água carregadas de agrotóxicos tornam-se mais leves ainda, pela evaporação. Parte do princípio ativo pode se volatilizar e se dispersar no espaço, carregado pelas correntes de ar. Daí se pode deduzir que os horários mais favoráveis para aplicação de agrotóxicos são aqueles das primeiras horas da manhã, ou à tardinha e melhor ainda se fossem à noite, quando o ar mais úmido faz com que as gotas se precipitem sobre a área pulverizada. Outro fator limitante é o vento no momento da pulverização. Tanto no que se refere à velocidade, quanto na direção e sentido do mesmo. Em aplicações terrestres, com ventos de 10 Km/h já observei deriva acentuada até vários metros além da faixa pulverizada. Nas aplicações aéreas o quadro é ainda mais preocupante, pois depende, também, da altura de vôo. Nesse caso a velocidade máxima do vento não pode ultrapassar os 8 Km/h, observados os outros parâmetros, como temperatura do ambiente e umidade relativa do ar. Para se ter um idéia da força do vento, quando este atinge os 9Km/h já é capaz de movimentar as gigantescas pás dos geradores eólicos de energia elétrica.



Aviação agrícola: O mito das aplicações seguras.



Os fabricantes de equipamentos para aplicação aérea desenvolveram dispositivos que tendem a diminuir os efeitos da deriva. Também as embalagens dos produtos, na sua maioria, são recolhidas e encaminhadas às centrais de recolhimento. Dá-se muita ênfase a esse aspecto da questão. Isso, aliado a muita publicidade, passa à opinião pública uma idéia de que as aplicações aéreas de agrotóxicos são seguras e feitas por equipes especializadas.

A legislação brasileira estabeleceu parâmetros ou normas operacionais para as aplicações aéreas de agrotóxicos. Os pilotos, assim como os técnicos responsáveis pelas empresas de aviação agrícola, recebem treinamento sobre a atividade. Conhecem a legislação pertinente. A Lei também determina que toda a aplicação aérea de agrotóxico seja precedida de planejamento operacional e se as condições meteorológicas não forem adequadas no momento da operação, esta deve ser cancelada. Então, com tudo isso poderia se deduzir que o meio ambiente e a saúde pública estão livres dos problemas dos agrotóxicos, especialmente quando aplicados via aérea. Ledo engano. Na prática, a realidade é outra. Uma vez que a equipe de aplicação aérea se deslocou até o local da área a ser pulverizada dificilmente ela cancela o serviço, mesmo diante de condições meteorológicas desfavoráveis. A fiscalização a campo se torna difícil e onerosa e depende muito de ação denunciadora de vítimas do mau uso da aviação agrícola. As vítimas tem dificuldade de encaminhar queixas com provas dos danos sofridos em suas propriedades. Ocorre que as provas dependem de laudos técnicos e muitas vezes faltam recursos financeiros para custeá-los. Outras vezes, os prejudicados não querem se indispor com algum vizinho ou até não conseguem testemunhas pelos mesmos motivos. Em reuniões comunitárias, já ouvi muitos relatos de problemas causados pelo uso de agrotóxicos, via aérea. Todos esperam alguma coisa das autoridades constituídas. Estas, por sua vez, quase sempre se omitem, por motivos vários. Alguns prefeitos, vereadores ou mesmo deputados relutam em tomar medidas, pois temem contrariar aliados políticos ligados às empresas de aviação agrícola, que tem poder econômico. Encaminhar projetos de lei às Câmaras Municipais, visando coibir situações de abuso ou de restrições de uso, via aérea, de algum agrotóxico, esbarra na argumentação de que o assunto é da alçada federal. Existe, portanto, uma brecha entre o que diz a Lei e a realidade fática. Por isso são poucos os casos que vêm à tona e que resultam em ações judiciais. Tem-se notado que muitas vezes as partes envolvidas nessa questão fazem acertos para reparar os prejuízos financeiros. Mas os problemas ambientais decorrentes continuam e se avolumam.




Os municípios podem legislar sobre os agrotóxicos e aviação agrícola?

Nos anos de 2003 e 2004, foram realizadas duas conferências municipais sobre meio ambiente, em São Borja. Na última, com a participação de quatrocentas pessoas, foi aprovada proposta de proibição de uso, via aérea, no território do Município de São Borja, de agrotóxicos formulados com os seguintes princípios ativos: inseticida CARBOFURAN (componente do produto comercial FURADAN 100 G e outros ), herbicidas 2,4-D e CLOMAZONE (componente do GAMIT). Como Secretário Municipal do Meio Ambiente, fiquei incumbido de redigir anteprojeto de lei e encaminhá-lo ao Gabinete do Prefeito. A matéria, com ampla justificativa, foi enviada à Consultoria Jurídica, que a considerou inconstitucional, já que seria de competência da União legislar sobre o tema. Frustrou-se, assim, a expectativa de centenas de pessoas e quem sabe de milhares de outras indiretamente. Se transformada em projeto de lei, a questão abriria enorme discussão e seria uma forma de esclarecer à opinião pública sobre o uso dos agrotóxicos e suas conseqüências. Alguns municípios romperam as barreiras e tomaram medidas restritivas com relação aos agrotóxicos. O Brasil, pelo tamanho do seu território e pelas peculiaridades regionais e locais, não pode ficar restrito à tutela federal no que tange à restrição de uso de alguns agrotóxicos, especialmente via aérea.

Em decorrência de situações graves e pelas brechas da legislação federal e estadual, os municípios começam a se mobilizar. Existem situações específicas e mesmo a precariedade da fiscalização que justificam a interferência dos municípios na questão dos agrotóxicos.



Da minha experiência pessoal com aviação agrícola



Tive experiência própria com a atividade de aviação agrícola, por dois anos, no início dos anos 1980. Na época eu tinha revenda de agrotóxicos. Acompanhei à campo várias aplicações aéreas. As normas operacionais da aviação agrícola, do Ministério da Agricultura, ainda não haviam sido estabelecidas, o que veio a ocorrer em l.983, com a Portaria 009/83 e seu anexo da Secretaria de Defesa Sanitária Vegetal. Constatei que, sempre que se aumentava o volume de água por hectare, aumentava a eficiência da aplicação, desde que as condições meteorológicas fossem favoráveis. Foram feitas aplicações aéreas com o lagarticida biológico Dipel, à base de Bacillus thuringiensis, com excelente controle de lagartas em soja. Tal produto só não fazia melhor efeito quando o volume de água era reduzido. Cheguei até imaginar que um dia teríamos uma ampla gama de produtos biológicos, sem efeitos nocivos à saúde humana e animal ou ao meio ambiente. No entanto, assisto, tantos anos depois, um desvirtuamento da atividade da aviação agrícola, quando se refere ao uso de agrotóxicos. Mesmo com toda a parafernália de equipamentos, legislação federal e o marketing das empresas que garantem eficiência, segurança, etc. a realidade é outra. Deixo claro que não tenho objeções aos demais usos da aviação agrícola, como, por exemplo: semeadura, aplicação de fertilizantes, combate a incêndios, etc. Meu questionamento refere-se à aplicação aérea de produtos nocivos à saúde humana e ao meio ambiente em geral. Mesmo que algumas empresas e pilotos tenham mais consciência nessa questão e procuram se adequar à legislação, existem fatores que extrapolam essas precauções, pelos motivos que exponho a seguir.

1- As aeronaves sobrevoam áreas bem maiores daquelas que são objeto da pulverização. Isto provoca grande turbulência no ar e as microgotas se espalham ainda mais no ambiente.


2- As pulverizações em baixo volume são realizadas sob grande pressão nos bicos, partilhando ainda mais as gotas. Isto, aliado à velocidade da aeronave, favorece a evaporação da água (veículo) e a volatilização do agrotóxico. A baixa umidade relativa do ar e as altas temperaturas agravam a situação, assim como a velocidade e direção dos ventos.

3- O vácuo formado pela aeronave provoca o arrastamento das partículas até centenas de metros após o fechamento dos bicos no final de cada tiro.

4- Quanto menor a área pulverizada, maior a contaminação ambiental, no entorno.

5- As áreas com relevo ondulado, caso das coxilhas, não permitem altura padrão sobre a cultura a ser pulverizada. Isto provoca deriva maior, quanto maior for a altura de vôo. As temperaturas das massas de ar nas áreas onduladas são diferentes nas partes mais altas e baixas e a deposição das gotas não fica homogênea.

6- Para se ter uma idéia do tamanho de uma gota, basta ver o seguinte exemplo. Se o volume de calda (água mais produto) a ser aplicado num hectare for 20 litros, teremos o seguinte:

20 = 20.000 ml; 1 hectare=10.000 m²

Ou 20.000ml/10.000m²= 2ml/m2

Vale dizer que em cada porção de 1 m² de área serão aplicados apenas 2ml de calda de agrotóxico. A divisão desse pequeno volume provoca gotas de diversos tamanhos, algumas tão pequenas que tem o aspecto de névoa. Outras são impercetíveis. Com isso tem-se uma idéia do que ocorre durante uma aplicação aérea. Imagine se as condições meteorológicas forem adversas.



Numa edição do programa Globo Rural, foi mostrado trabalho de pesquisa sobre deriva de agrotóxicos nos Estados Unidos. Com aparelhagem ultra-sensível, conseguiram detectar a presença de pequeníssimas gotas do produto a dezenas de quilômetros do local de aplicação, via aérea, em condições meteorológicas consideradas normais.

Em certa ocasião, notei clorose acentuada em folhas de cinamomo, na verdade houve o branqueamento das folhas e logo deduzi que os sintomas se referiam à ação fitotóxica de herbicida à base de CLOMAZONE (GAMIT). Depois constatei que foi feita aplicação aérea com esse produto em lavoura de arroz situada a quase três mil metros do local onde havia observado os danos. Não havia outra lavoura nas imediações. As correntes de ar levaram o produto a longa distância. Era um dia de calor, mas os ventos eram normais. Talvez o leitor se surpreenda e há quem queira contestar o que já foi presenciado por mim. Em épocas de aplicação de herbicida, o ir e vir de aeronaves agrícolas sobre um mesmo local, mesmo sem estar aplicando o produto, pode provocar ação fitotóxica. Isto é perceptível na primavera, nos dias quentes, quando as folhas novas das árvores caducifólias, ficam deformadas. Nessa época inicia a aplicação de herbicidas nas lavouras de arroz aqui na região. São freqüentes os relatos sobre isso. Ocorre que podem estar ocorrendo pequenos vazamentos de calda, quase imperceptíveis. Também é possível a volatilização do produto, especialmente em dias de muito calor. A pressão exercida dentro do tanque força a saída do produto volatilizado pelos bicos de pulverização. Tal possibilidade ficou demonstrada com outro fato que presenciei. Um pulverizador do tipo costal, de 20 litros, vazio e que havia sido usado para aplicação de herbicida, foi deixado no sol próximo a plantas de vaso. Horas depois, as plantas apresentaram folhas murchas num raio de quase três metros a partir do pulverizador costal. No dia seguinte algumas folhas estavam cloróticas e uma planta secou completamente dias depois. Sabe-se, por exemplo, que os herbicidas à base de 2,4-D são altamente voláteis e causam grandes danos nas plantas denominadas popularmente como de “folhas largas”, diferentes das gramíneas. Embora as restrições de uso, o 2,4-D ainda é aplicado via aérea, como pude comprovar em perícias judiciais.



Alguns casos reais de deriva de agrotóxicos



A soja transgênica foi saudada como um grande avanço. Realmente, à primeira vista, parecia resolver um problema sério que é a infestação da lavoura pelos inços. A aplicação de herbicida à base de glifosato permite o controle das invasoras em estágio avançado dentro do cultivo. Mas todo o remédio químico certamente tem efeitos colaterais e não deve ser apregoado como a única solução. Não vou me ater a efeitos de longo prazo, desconhecidos e que não posso comprovar. Mas vou me referir a fatos já constatados. Via terrestre o uso sem critérios de glifosato está dizimando a vegetação marginal das lavouras e aquela protetora das encostas ou taludes das estradas. Com isso, aumenta a erosão do solo por falta da forração vegetal. No que se refere à aplicação aérea, o problema é similar, com uma agravante: a deriva atinge outras culturas suscetíveis ao glifosato mesmo a centenas ou milhares de metros. Atuei como perito numa ação judicial, onde a parte autora pediu indenização por danos em lavoura de arroz provocados pelo herbicida glifosato usado em lavoura de soja transgênica. A maior parte do herbicida na soja havia sido feita com aeronave. Com ventos de 14 Km/H e no sentido da lavoura de arroz, a deriva levou o glifosato a centenas de metros, em quantidade suficiente para liquidar uma parcela de arroz germinado a poucos dias.





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