3 de maio de 2010

O ÚLTIMO DESEJO


Foto: Darci Bergmann*

Por Darci Bergmann
      Na viagem de volta da Rio 92 conheci algumas pessoas no ônibus. Logo se formou um grupo de animada conversa. Entre as anedotas e estórias que afloraram, destaco uma que tem como cenário uma região desértica de um país perto do Saara. Naquela região de chuvas escassas e solo arenoso, poucas plantas se adaptam ao cultivo, sobressaindo-se a tamareira, espécie de palmeira cujos frutos são bastante comercializados. O transporte usava camelos. O comércio era feito pela troca de mercadorias e pela moeda local que, na época, equivalia ao dólar americano. Ali vivia um ancião e seus três filhos, sendo o mais novo de nome Salim. A família produzia tâmaras e comercializava camelos. Mas os tempos já eram outros e o pai queria que um dos seus filhos fosse estudar na capital. Os negócios iam bem, mas era preciso garantir a sustentabilidade naquela região desértica. A família aumentara e logo os filhos estariam casando e a prole aumentaria ainda mais. Depois de muitas conversas, ficou decidido que Salim, o caçula, iria para a capital, onde poderia se hospedar na casa de um parente. Salim quis estudar agronomia, com ênfase numa agricultura ecológica. Desde pequeno seu pai já falava em economizar água. Já dispunham de algumas modernidades tipo banheiro com vaso e descarga. Pela manhã, um por um dos filhos ia para o banheiro, fazia ali as necessidades e a descarga só era acionada quando todos já haviam ocupado o trono. Tudo isso para economizar água. O esterco dos camelos fornecia adubo para as tamareiras e também era usado como fonte de energia, pois a lenha ali era escassa. Com o tempo, os lampiões à querosene foram ali introduzidos e mais tarde geradores à óleo diesel vindos da Alemanha produziam energia elétrica. Mas a água era o produto mais escasso. O pai de Salim sempre dizia que o petróleo pode trazer dinheiro para o país, mas só a água traz vida. Com esses conceitos, Salim foi estudar agronomia. Descobriu coisas interessantes e participou de estudos sobre permacultura, um ramo da agricultura ecológica. A permacultura, ou agricultura permanente, utiliza os recursos de uma região de forma sustentável. Por exemplo, as construções são feitas com materiais alternativos da região. Os adubos são produzidos no local; água e energia não podem ser desperdiçados.
    Nas férias, de volta à casa, Salim já começou a fazer melhorias, aliando a sua experiência com o que aprendeu nos estudos da capital. Implantou o sanitário compostável, que não precisa de água. Só não tinha serragem de madeira, mas no clima seco usava areia para misturar aos excrementos que, depois de fermentados, viravam adubo orgânico. Melhorou a produção das tamareiras. Instalou dispositivo mais eficiente para a captação de água das escassas chuvas. Montou até um painel solar para aquecimento de água e depois instalou painéis fotovoltaicos para produzir energia elétrica. Perante os irmãos, justificou esses investimentos, alegando que o gerador a óleo diesel causava muito barulho. O combustível era barato lá na refinaria, mas se tornava caro pelo transporte feito com os camelos. A permacultura ensina que tudo o que é produzido no local tem mais eficiência, pois as longas viagens gastam mais energia, ainda que esta seja por tracão animal. Alem disso, aquele cheiro da queima de óleo já era motivo de reclamação do seu velho pai.    
    Aos poucos, Salim foi adicionando novos conceitos e percebeu que agronomia e ecologia tinham muita coisa em comum. Mas precisava também aprender sobre economia e administração. Concluiu os estudos agronômicos, lançou-se a estudar economia e administração. Ali aprendeu novas formas de comercializar e agregar valor aos seus produtos. E descobriu que as transações comerciais são créditos que passam de uma pessoa à outra e que isso pode ser em dinheiro, cheques ou outra forma de pagamento. Começou a utilizar o sistema de cheques, apesar da desconfiança dos seus irmãos, que preferiam que tudo ficasse no sistema antigo, em moeda corrente do país. Com o tempo, Salim convencera os irmãos que trabalhar com cheque era seguro e prático. Terminados os estudos de economia e administração, Salim viu que a modernidade também trouxera os espertalhões para a região e que as leis do livro sagrado não eram respeitadas por todos. Novas leis foram implantadas pelo governo e era preciso conhecer alguma coisa sobre o assunto. Decidiu, então, estudar direito, até para que os negócios da família não fossem alvo dos novos espertalhões. Advogado formado, com ampla base em outros ramos do conhecimento, os irmãos passaram-lhe a chefia dos negócios. Salim convencera os irmãos de que trabalhar com cheques era seguro, desde que observados certos critérios. Nunca tivera problema com essa forma de transação, mesmo decorridos vários anos em que chefiava os negócios da família. Mas respeitava a vontade dos seus irmãos que preferiam ainda trabalhar com dinheiro vivo nas suas atividades pessoais.
   Com o passar do tempo, o pai de Salim envelhecera vendo a empresa familiar bem sucedida. Com idade avançada e pressentindo que em breve partiria para o outro lado da vida, o ancião convocou os três filhos e lhes fez um último pedido. Antes, contou-lhes que sempre fizera economia em tudo, desde as pequenas coisas do cotidiano. Poupava água, plantou tamareiras, criou camelos, evitava comprar coisas supérfluas e assim sobrava-lhe algum dinheiro para as outras despesas, inclusive os estudos do Salim. Revelou também que por crença herdada dos antepassados, as pessoas quando morriam levavam para as tumbas parte dos seus pertences que seriam usados pelos espíritos dos mortos. A família agora era rica, porque soube economizar. O ancião pediu então que cada um dos filhos, como último gesto de gratidão, depositasse sobre o seu esquife uma quantia de duzentos e cinqüenta mil dos seus proventos pessoais. Alguns dias depois, o pai de Salim morreu. Os dois filhos mais velhos logo depositaram sobre o caixão o dinheiro em cédulas novas, totalizando quinhentos mil. Chegou a vez de Salim fazer o depósito sobre o esquife. Primeiro, conferiu o dinheiro depositado pelos irmãos e constatou o valor de quinhentos mil. Sacou do bolso um talão de cheques e preencheu-o com o valor de setecentos e cinqüenta mil, depositou-o sobre o esquife e pegou os quinhentos mil em cédulas como troco da transação. Estava realizado o desejo do seu pai.

*Notas: 1- A palmeira da foto é a tamareira-das-canárias Phoenix canariensis.
 A tamareira referida na estória é a Phoenix dactylifera
            2 - O texto foi adaptado pelo autor e visa a difusão de conceitos de sustentabilidade ambiental.

Um comentário:

Jarbas disse...

Salim demonstrou ser um cara esperto em duas ações muito sábias: a primeira foi melhorando técnicas já desenvolvidas por sua família ou criando outras técnicas no que diz respeito aos cuidados do meio ambiente; a segunda foi utilizando de forma sábias o dinheiro no funeral de seu pai!