20 de agosto de 2010

Vejam como estamos matando os índios

Os alertas de Lutzenberger e a impressionante atualidade

Estamos arrasando o planeta!
Precisamos retornar à natureza!
Chega, chega de vandalismo!

 

Íntegra da entrevista de José Antônio Lutzenberger ao Pica-Pau, suplemento semanal do jornal A Razão, de Santa Maria/RS, em 1973.

PP- O que o levou a se transformar num grande defensor do ambiente natural?

L – O que me levou a entrar nesta luta, posso dizer que foi uma questão de idiossincrasia. Desde criança sempre fui um naturalista, no sentido de sentir e amar a natureza. Meu pai era pintor, sabia ver as belezas da natureza, aprendi com ele essa sensibilidade. Desde criança sofria em ver todos esses estragos, essas agressões, muitas vezes irracionais e desnecessárias. Depois, quando me formei, trabalhei na indústria química, não por inclinação, mas por ser a única maneira de ganhar a vida, afinal de contas isso é preciso. Foi na indústria química que tive a oportunidade de viajar grande parte do mundo. Trabalhei oito anos na Venezuela, de onde viajava para outros países vizinhos, inclusive ao Caribe. Trabalhei também na África do Norte, na Europa, aqui no Brasil. Em todos os lugares tive a oportunidade de ver os mesmos estragos, a mesma agressão cega e cada vez mais violenta do homem contra seu ambiente. Dentro da indústria química, tive oportunidade de ver, por vez primeira, em primeira mão, a cegueira total do homem para com seu meio ambiente, ver que a única coisa que conta é o lucro imediato. Os métodos da química na agricultura, são métodos que só se justificam por razões comerciais, exclusivamente, que desprezam totalmente os fatores ecológicos, que os técnicos naquele campo desconhecem. A maioria de meus colegas era feliz, se sentia realizada, mas tinha uma visão muito estreita, apenas se interessava com seu produto e aumento do mercado; cada ano as vendas se duplicavam. Não tinham, por exemplo, uma sensibilidade aos aspectos estéticos da natureza; para eles uma paisagem só tinha valor como substrato, para produção e para vender mercadoria. Esta mentalidade predomina e é difícil de ser modificada. Eles visam por si mesmos uma economia imediata que lhes de um lucro rápido a curto prazo. Para que se modificasse esta forma de pensar seria preciso toda uma educação no sentido de despertar a sensibilidade das pessoas para as coisas da natureza. Como ecologista, só posso deixar como mensagem a esperança de que todos se conscientizem da importância da preservação da natureza e comecem realmente a lutar por ela.

PP – O sr. acredita que a curto prazo a ecologia pode solucionar o problema da fome?

L – Provavelmente não, pois a explosão demográfica já se encontra muito disseminada pelo mundo. E isto em absoluto não é uma advertência fantasiosa, mas a pura realidade. O fato de que o mundo pode vir a se transformar num enorme cemitério infelizmente é realidade. Os produtos químicos em grande parte são responsáveis, pois seu uso indiscriminado pode exaurir a terra. Mas, para substituí-los já estão sendo empregados métodos biodinâmicos que tem conseguido resultados espantosos. Por exemplo: empregando estes métodos num campo de batatas, na Inglaterra, conseguiu-se o dobro de produção que era normalmente de 25t, passou a 50t só com o emprego de métodos biodinâmicos. Mas o emprego de métodos biodinâmicos é de difícil aceitação, pois implica numa mudança de filosofia que é muito mais difícil e leva muito tempo. De modo que não vamos poder mudar os métodos de um dia para outro.

O agrônomo é o homem que mais devia estar em contato com a natureza

O agrônomo é o homem que mais devia estar em contato com a natureza e hoje ele está vendo-a como matéria-prima para tirar dela o máximo proveito econômico. Vejam as coisas que estamos fazendo no Mato Grosso, derrubando milhares de Km² de vegetação nativa para fazer pastos; o mesmo que fizemos na Amazônia para plantar eucaliptos, ou lavouras de duração efêmera. De modo que o agrônomo deve tornar-se um verdadeiro naturalista no sentido de amar, de sentir-se integrado na natureza. Eu daria como definição de naturalista o homem, não necessariamente o biólogo por aí que merece o nome de naturalista. Na indústria química, por exemplo, existem excelentes biólogos que são biólogos apenas para aprender a melhor maneira de matar mosquito. Nos laboratórios bélicos das grandes nações existem biólogos que só se preocupam com a melhor maneira de matar gente. Ora, isso não é naturalista nem biologista, é um assassino, seja da natureza ou de semelhantes. Por outro lado, conheço gente que não são naturalistas nem biologistas, mas que tem grande amor pela natureza: gente que sofre quando vê uma depredação. Esse é o verdadeiro naturalista. Quando ele, além disto, é biólogo, tanto melhor, mas não necessariamente. O que realmente faz falta é uma filosofia, uma maneira de ver. Um grande naturalista era Albert Schweitzer; sempre fazia questão neste sentido ele nem era cristão porque o cristianismo em sua maior parte é antropocêntrico. Ele fazia questão de dizer que nossa ética deve incluir todos os animais. Hoje a ética do homem ocidental é puramente antropocêntrica; nós enxergamos exclusivamente a humanidade e os negócios entre os humanos; e todos os demais seres são apenas matéria-prima; nós enxergamos a magnífica baleia com 30t de banha; se temos uma araucária milenar estamos enxergando apenas tábuas. Enquanto tivermos esta atitude, é claro que nós continuaremos sempre aumentando nossa agressão contra o ambiente, até que nós mesmos desapareceremos. Nós temos que voltar o homem para a natureza. Não contra, por cima e fora dela. Nós temos que ver que somos parte dela e vê-la como parte de nós. Assim como os budistas, com sua mentalidade totalmente diferente; falo nos poucos que ainda sobram, pois infelizmente hoje os temos contaminados com a nossa maneira de ver. A ideologia ocidental é uma ideologia fanática que está convertendo todas as demais culturas. Agora temos praticamente uma só cultura no mundo. Uma cultura não somente fanática, mas missionária. Pensamos que todos os povos que pensam de uma maneira diferente de nós são atrasados e que nós temos de levar nosso progresso até eles.

Hoje achamos que eles são bárbaros e nós os civilizados

Vejam como estamos matando os índios. Hoje achamos que eles são bárbaros e nós os civilizados, quando a situação é totalmente inversa. Os índios viveram 30 mil anos dentro daqueles postos e nunca estragaram nada. Ele está a 30 mil anos caçando ali e nunca exterminou espécie alguma, porque o índio se sente integrado em seu ambiente; ele não vive da destruição do ambiente e sim dos juros que a natureza lhe rende. Nós vivemos do capital, do consumo do nosso capital. Nosso sistema é insustentável. Não poderemos continuar mais três ou quatro décadas no sistema atual, pois estamos arrasando o planeta, estamos vivendo da destruição, da dilapidação da ecosfera, no grande sistema de suportes de vida neste planeta. Devemos restabelecer situações de equilíbrio permanentemente sustentável no nosso ambiente. Isto que chamamos de agricultura moderna, em muitos aspectos é uma rapina mais violenta que a rapina do caboclo, que derruba mato e faz deserto. Os nossos métodos de alta produtividade momentânea se baseiam muitas vezes na destruição da produtividade futura. Nós estamos assinando hoje notas promissórias que serão pagas por nossos filhos e nossos netos. Isto é mais rapina ainda que a do caboclo. Nós temos que voltar às situações de equilíbrio estável, de equilíbrio permanentemente sustentável, a viver dos juros não do consumo do capital. E nesse sentido situo o agrônomo como uma das figuras chaves, mas necessitamos para isso uma nova filosofia, radicalmente oposta à atual. Este é o problema fundamental da situação da humanidade: é que nós voltamos sempre ao aspecto filosófico e a nossa ideologia, a do progresso que temos hoje, parte da idéia do crescimento indefinido, não somente em população, mas também em consumo.

Vemos a economia praticamente ao avesso, somente a parte do dinheiro, não os custos ambientais

 Vemos a economia praticamente ao avesso, somente a parte do dinheiro, não os custos ambientais. A medida que hoje usamos para medir o progresso, por exemplo, é o PIB - Produto Nacional Bruto, mas produto nacional bruto como medida de progresso é um contra-censo, porque ele mede somente fluxo de materiais, nada mais. O produto nacional bruto é a soma de todas as transações entre humanos; no produto nacional bruto não aparecem os custos ambientais. Quando derrubamos pinho para fazer madeira, no Produto Nacional Bruto naquele ano aparece o valor monetário daquela madeira vendida ou exportada, como se fosse uma riqueza criada naquele ano. Mas no Produto Nacional Bruto não aparece desconto pela descapitalização que agora ficou naquele bosque. Aquele pinho desaparecido no bosque não é descontado.

O Produto Nacional Bruto reflete ali uma riqueza criada enquanto na realidade é uma descapitalização. Não se criou nada. Então há aquela euforia de progresso, enquanto na realidade não houve progresso nenhum; nós apenas consumimos capital. Se eu ficar doente hoje e gastar 100 mil cruzeiros no hospital, o Produto Nacional Bruto sobe 100 mil cruzeiros, como se o país estivesse mais rico por causa disso. Mas isso é um custo e nós estamos vendo as coisas ao avesso. A verdadeira medida do progresso deveria descontar todos os custos ambientais. Vejamos no caso da Borregaard*: quando o governo permitiu a instalação da Borregaard, os economistas e os políticos viram as divisas que aquilo nos traria, parece que aquilo nos traria uns 25 milhões de dólares anuais e que daria uns 2 mil empregos. Como nós temos que dar emprego a dois milhões de pessoas por ano, qualquer um que se apresenta e oferece 100 empregos é recebido com grande entusiasmo; 25 milhões de dólares de divisas não deixa de ser uma medida importante, mas ninguém pensou, ninguém viu o outro lado da moeda, ninguém pensou em termos de custos ambientais. E essa é uma terminologia que temos de lançar. Nós temos que ensinar o público e os políticos a verem esses aspectos. A Borregaard, que por um lado ela nos traz 25 milhões de dólares de divisas e nos proporciona 2 mil empregos, por outro lado traz também desempregos. Enquanto de um lado esse emprego é visível, o desemprego é invisível. Para os 2 mil empregados que trabalham nos bosques da Borregaard, quem sabe se 20 mil pescadores já não perderam os meios de vida... Acontece que, se fechamos hoje a Borregaard, amanhã teremos 2 mil trabalhadores na rua, contestando, mas os vinte mil pescadores se retiraram pouco a pouco, sem protesto, pois não sabem nem porque se retiram, apenas notam que o rio não dá mais peixe. A celulose não somente estraga a paisagem, mas também os rios. Devemos pensar em outros termos, mas aí reside o conflito: desenvolvimento e sobrevivência da humanidade. Enquanto pensarmos somente em termos de dinheiro, continuaremos a destruir nosso ambiente.

Notas: 1)A entrevista foi concedida aos formandos de Agronomia da UFSM e repassada ao Departamento de Comunicação do DCE/UFSM que a publicou no Pica-Pau, suplemento de A Razão ( Santa Maria/RS)
2) Lutzenberger palestrou em evento do Diretório Acadêmico do Centro de Ciências Rurais, com o tema Problemática da Química na Agricultura, com um público de mais de 500 pessoas, quando emitiu tais conceitos.
*Borregaard: Nome antigo de uma indústria de celulose às margens do Rio Guaíba.

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